Utilizados para fins medicinais desde a Antiguidade, os opioides são classificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como essenciais para o tratamento da dor e seu consumo é um dos fatores que compõe o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de uma nação.
Mesmo assim, o excesso de regulamentação em torno da prescrição e uso dessas substâncias acabam por restringir o acesso dos pacientes a tratamentos mais eficazes –situação que, no Brasil, ainda exige a superação de barreiras físicas, econômicas e sociais, fazendo com que o país figure entre aqueles com menor consumo de opioide per capita no mundo.
Primeiro, é preciso ter consciência de que a dor pode e merece ser tratada. No paciente com câncer, o manejo adequado da dor possibilita maior adesão ao tratamento oncológico, além de impactar diretamente na qualidade de vida e ganho de sobrevida.
No entanto, a dor permanece como um sintoma extremamente prevalente, podendo atingir uma incidência maior que 80%. Infelizmente, a desinformação não é só por parte dos pacientes, pois a educação técnica voltada ao tratamento da dor também é precária no Brasil. Todos os anos, as universidades formam centenas de novos médicos e enfermeiros, mas poucas horas são destinadas em sala de aula ao manejo correto da dor.
Quando o paciente consegue transpor a barreira da informação, entendendo que não precisa conviver com dor e encontrando um médico que compartilha dessa consciência –não sem, antes, passar por quatro ou cinco profissionais diferentes–, surge a burocracia estampada em papel amarelo.
No Brasil, alguns opioides só podem ser prescritos em um tipo específico de receituário, amarelo e destinado a substâncias controladas, aquelas que podem ser utilizadas de forma abusiva, causando dependência.
Para obtê-lo, o médico precisa seguir um longo processo burocrático, indo pessoalmente à Secretaria de Saúde, munido de diversos documentos e com uma boa justificativa para a solicitação; quando finalmente consegue, só recebe um número limitado de receitas, como se prescrever opioides fosse crime. Então, na falta do receituário amarelo, muitos médicos optam por prescrever outras classes de medicamentos, que isoladamente não são eficazes para tratar a dor.
Se o paciente tem sorte e encontra um médico munido do receituário amarelo, vem a peregrinação em busca do medicamento, pois encontrar opioides em farmácias também não é tarefa fácil. Estabelecimentos que comercializam substâncias controladas são submetidos a mais fiscalização e burocracia, reduzindo o número de locais dispostos a assumir essa contrapartida.
Já o paciente que recorre ao sistema público fica restrito a poucas opções terapêuticas, o que muitas vezes impossibilita um tratamento efetivo, e é notório que pacientes tratados inadequadamente oneram mais o sistema de saúde, pois apresentam reinternações frequentes, com mais leitos ocupados e superlotação do sistema, aumento do custo com procedimentos invasivos e maior absenteísmo no trabalho.
Os órgãos de saúde precisam entender que desburocratizar a obtenção do receituário amarelo tem impacto positivo em toda a cadeia de saúde e que isso não implica, necessariamente, em facilitar a obtenção dessas substâncias para uso indiscriminado. Significa, sim, diminuir o controle puramente burocrático, que dificulta o acesso dos pacientes que sofrem diariamente com dores intensas a um tratamento digno e eficaz.
Os pacientes, hoje, enfrentam muitas dificuldades em busca de um pouco de alívio. É preciso dividir essa conta, e a mudança do receituário é o primeiro passo.
IRIMAR DE PAULA POSSO, 73, é advogado, médico anestesiologista e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED)
Fonte: Folha de São Paulo Online